segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Ronaldo: o primeiro "produto mercantil" do futebol

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Ronaldo, o "Fenómeno", abandonou o futebol para grande tristeza do próprio assim como para muitos fas de um dos melhores jogadores de sempre. Já fora do brilho de outros tempos, o avançado brasileiro contiava a fazer sonhar muitos adeptos com a sua inexplicável qualidade.

Hoje trazemos uma repostagem do PUBLICO online, publicada em 19.02.2011 por Filipe Escobar de Lima sobre a importância comercial do jogador ao longo da sua carreira:


Tudo na vida do "Fenómeno" foi estudado para vender. Desde os 16 anos até à sua retirada no início da semana, com 34 anos. Quase duas décadas de luta. Dentro e fora dos relvados.

Dizem que Ronaldo dormiu abraçado ao seu pai depois da derrota do Brasil na final do Campeonato do Mundo de 1998. Dizem que chorou e que parecia um miúdo assustado, como nos tempos em que era menino e partilhava a pequena casa na favela de Bento Ribeiro, um entre os vários bairros miseráveis do Rio de Janeiro, conta Santiago Segurola no livro Fútbol y Passiones Políticas, num capítulo a que dá o nome de "Ronaldo, como metáfora".

Com 21 anos e todo o peso do mundo nos seus ombros, o avançado, já com a alcunha de "Fenómeno", que todo o Brasil esperava que conquistasse o ceptro maior do futebol mundial, mostrou o pior lado de um desportista. Paris e o Estádio de Saint Denis, onde a França de Zidane se consagrou às custas do rival mais poderoso, caído em desgraça juntamente com o seu ídolo maior, deu ao mundo o palco ideal para o sacrifício de um deus. Passados 13 anos, Ronaldo abandonou a carreira e disse-se derrotado pela doença.

Os dois momentos – a derrota do Brasil e o anúncio da doença – estão ligados por um fio invisível: ambos foram condicionados pela poderosa máquina de marketing atrás do atleta. Para Paula Neiva, colunista da revista Veja, o anúncio da passada segunda-feira foi o final de carreira perfeito. "Com filhos, hipotiroidismo e o fim, foi um fenómeno de marketing".

Para dar início ao anúncio, às 13 horas de São Paulo, teve ao seu lado os dois filhos (um deles reconhecido como tal no fim do ano passado), vestidos com a camisola do Corinthians, último clube da sua carreira. Ligou a sua câmara ao Twitter (este patrocinado por uma empresa de telemóveis), "e obteve efeito digno de fenómeno. Em menos de dois minutos, seis mil pessoas estavam a seguir a transmissão", diz Paula Neiva.

Chegou a ter mais de dez mil seguidores em directo. Ronaldo aproveitou para falar do seu futuro, agora dividido entre a sua fundação "Criando Fenómenos" e sua empresa de gestão desportiva. "A vida de jogador chegou ao fim, mas o fenómeno de marketing, pelos vistos, terá ainda vida longa", conclui a colunista.

A vida de Ronaldo sempre se regeu desta forma. Nos bons e nos maus momentos. Nesse dia de 12 de Julho de 1998, ficou à mostra o lado escondido de Ronaldo, aquele que os patrocinadores teimaram em ocultar: o medo, as dúvidas, as frustrações, a ansiedade, as lesões.

Foi assim protegido durante toda a sua carreira, desde os 16 anos, quando despertou o interesse de dois jovens empresários ambiciosos (e que acabariam, anos mais tarde, na cadeia) que começavam a carreira de representantes de jogadores. Reinaldo Pitta e Alexandre Martins compraram o seu passe por 7,5 mil dólares e tentaram logo vendê-lo ao Botafogo do Rio de Janeiro. Falhada a tentativa, viraram-se para o São Paulo, mas também não deu certo. Ronaldo acabaria por rumar ao Cruzeiro de Belo Horizonte e começar uma odisseia tão grande dentro como fora dos relvados. Aí começava a vida dupla do "Fenómeno".

Com Pitta e Martins assinou um contrato de dez anos e, em caso de ruptura contratual por parte do jogador, eles teriam de ser indemnizados em milhões de dólares. Com 16 anos, era já um produto apetecível; aos 17, as suas qualidades futebolísticas já ultrapassavam o seu bairro e o Cruzeiro e seria chamado por Carlos Alberto Silva para o Mundial de 1994, nos EUA. As primeiras comparações com Pelé começavam a surgir. Não jogou nem um minuto, mas o título de campeão do mundo alcançado pelo Brasil também lhe foi outorgado. E os patrocinadores começaram a rondá-lo.

Bigger than sports

Quatro anos depois, com 21, era um ídolo de todo um planeta e cabeça de cartaz do desporto mais popular do mundo. Era a primeira estrela global e estandarte da marca Nike, protector de uma família numerosa, namorado de Susana Werner, uma beleza loira que, graças à sua ligação com Ronaldo, também conseguiu um contrato chorudo com a marca norte-americana. A Nike, a experimentar os seus primeiros passos no futebol, numa resposta clara às investidas da Adidas nos desportos americanos, via em Ronaldo o produto ideal. E tomou conta da sua agenda, bem como da selecção do Brasil, obrigando à participação de um número mínimo de jogos por ano para além dos oficiais.

Foi com o peso dos agentes, representantes das marcas que o patrocinavam, dirigentes federativos, assessores de imagem e assessores de imprensa que Ronaldo entrou em campo para a final em Paris, em 1998. Tinha-se fabricado aquilo a que Segurola chama no seu livro o "produto mercantil", algo que tinha de estar longe das misérias dos jogadores comuns, das falsas verdades, da imprensa má. A pressão seria, no entanto, de mais. Na véspera do jogo, teve convulsões, o seu companheiro de quarto, Roberto Carlos, nunca desmentiu a ida do jogador a um hospital para ser tratado. Na lista do jogo, o nome de Ronaldo não aparecia. Mas seria titular à última hora. O Brasil começou aí a perder o jogo.

"Tinha um carisma tão forte que serviu como escudo em relação a alguns acontecimentos extracampo (o mistério da final do Mundial 98, contusões, casamentos desfeitos, "casos" fora do casamento, saídas nocturnas)", conta Ricardo Araújo, especialista brasileiro em planeamento e gestão de marcas desportivas. Sobreviveu a essa final perdida para a França, mas o calvário ainda mal tinha começado. Tinha jogado na Holanda pelo PSV e estava agora no Barcelona, ao serviço de Bobby Robson e de José Mourinho como adjunto.

O golo. E eis que Ronaldo toca no céu. O Barcelona foi a Compostela para cumprir mais um jogo no ano de 1996, mas o possante brasileiro, naquela noite de Inverno, fez uma obra de arte. Fez algo de sobrenatural. Estávamos perante um novo tipo de jogador: tinha-se descolado de Pelé, era maior que Maradona e mais possante que Van Basten.

Aquela jogada que começou antes da linha de meio-campo e acabou em golo sempre nos seus pés converteu-se em anúncio, passou em todas as televisões e abriu as portas a todos os seus patrocinadores. Razão tinha Robson, quando levou as mãos à cabeça no final da jogada. Um novo herói nos campos e mártir das marcas acabava de se tornar maior que o próprio desporto.

Era obrigado a fazer mais de 50 jogos por época. O PSV deixou-o ir em 1996 para o Barcelona, convencido de que os seus joelhos eram de cristal perante a sua explosividade durante o jogo e o seu físico portentoso. Custava-lhe treinar o suficiente para queimar tudo o que comia e, como se descobriu em Milão, anos mais tarde, tinha sérios problemas hormonais. Foi escravo das lesões. Entre as duas lesões graves que teve na sua carreira, em 2000 pelo Inter de Milão e em 2007 pelo Milan, foi ganhando outra fama: a de boémio.

Midas do desporto

"Durante os anos em que apresentava boa forma, as suas actuações em campo "apagavam" o extracampo. Mesmo aquando das suas transferências de clubes, sempre polémicas, em que lhe faltou habilidade e aos seus assessores, nada disso teve um impacto negativo no valor dos seus contratos", lembra Ricardo Araújo.

O único momento de baixa, em termos comerciais, foi o período de inactividade pós-Milan, em 2008, devido à grave contusão no joelho, momento em que se encontrava com mais idade e havia muitas dúvidas em relação ao futuro. Foi a altura do caso dos travestis.

No dia 28 de Abril de 2008, depois de uma festa na Barra da Tijuca (Zona Oeste do Rio), quando comemorava uma vitória do Flamengo, Ronaldo passou pela orla da Barra, chamou um travesti e levou-o para um motel, com outros dois travestis. O caso chegou aos tribunais e o travesti Andréia Albertini foi acusado formalmente por tentativa de extorsão. O jogador disse que pensava serem mulheres, mas nunca mais se livrou da fama.

Foi o ano em que perdeu alguns contratos, deixou de assinar outros. Com a sua transferência para o Corinthians, terminando um período de ouro na Europa (durante 15 anos) e a euforia pelo regresso ao Brasil, Ronaldo voltou à ribalta. A sua imagem, principalmente no mercado brasileiro, voltou a crescer, embalada por actuações surpreendentes dentro de campo.

"Pode apostar que a sua imagem, mesmo após a sua reforma, continuará alavancando muitos negócios para as suas empresas", analisa Araújo. "Ele é um Midas do desporto". Para João Moreira, jornalista português no Brasil, Ronaldo não é brasileiro. "É de todo o mundo".

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